À luz dos archotes e lanternas, vi o grande homem surgindo em meu campo de visão e trazendo consigo um chicote, que, de tão grande, se arrastava no chão. Já tinha perdido a sensibilidade das minhas mãos há tempos. Meus olhos já não enxergavam com clareza os que me rodeavam. O grande feitor se aproximou e xingou-me, cuspiu-me, e se encaminhou para as minhas costas nuas, marcadas por linhas vermelhas de sangue. Olhei o público que me assistia: homens e mulheres conhecidos e nem tão conhecidos assim, crianças, entre elas minha pequena Shaira que me olhava com lágrimas nos olhos. Na primeira chibatada, minhas mãos mexeram-se nervosamente, incapazes. Minha doce poetiza olhou-me uma última vez e saiu correndo para a senzala. Eu não a culpava.
7 chibatadas.Estava novamente em minha terra natal, uma pequena aldeia ao sul da África em que todos viviam harmoniosamente. Lembrava-me do sacerdote mais velho que vivia dançando para cá e para lá, orando e fazendo os outros orarem. Lembrava-me de Alika, minha mulher, que cuidava de nossa casa e afiava sempre minha alabarda. Então vieram os ataques das outras aldeias, que com coisas pretas recheada de pólvora nos matavam rapidamente.
18 chibatadas.
Eu, Alika, Shaira, meus irmãos e os de Alika fomos tomados escravos, assim como os sobreviventes de nossa tribo. Nunca mais vi o sacerdote dançante.
Todos esperávamos ser levados à alguma aldeia inimiga, e até estávamos um pouco conformados com isso. Até que os gewapende mans, como passamos a chamar os invasores, pastorearam-nos para a costa africana. Homens vestidos com longas batas e outros com coletes de couro nos receberam com brutalidade. Fui obrigado a assistir à violência que eles praticavam com meu povo quando não seguiam ou não entendiam suas ordens.
29 chibatadas.
Gritei agonizando. Era muita dor. Shaira não tinha voltado para me ver, e alguns dos meus companheiros se retiravam para suas duras e frias camas de palha.
Na África, nós fomos guiados pelos homens de túnicas para os barcos que flutuavam no mar azul-esverdeado, atracados a grandes estacas num pequeno cais. Abraçado a minha filha e segurando a mão de minha mulher fomos trancados lá dentro, num pequeno salão, junto com outras tantas pessoas.
40 chibatadas.
Todos murmuravam naquele porão que iríamos morrer, que eles nos dariam a cães, ou até mesmo que nos colocaram ali para matarmos uns aos outros.
A comida só chegava quando a fome já atingia um estado crítico. Eu e Alika tirávamos sempre um pedaço de nossa comida para acrescentar ao bolo da comida de Shaira. O fedor ali era intenso, não há forma para se descrever tão cruel realidade. Vi amigos morrerem de doenças que brotavam do nada e levavam as almas pobres dos homens da mesma forma que chegaram. E foi dessa forma que minha linda e preciosa Alika faleceu nos meus braços... e nos de nossa filha.
54 chibatadas.
O resto da viagem foi traumatizante. Minha filha foi levada, junto com o corpo da mãe, por um homem bruto que a fez assistir enquanto jogavam minha mulher nas águas do mar, pelo menos foi isso que minha pequenina me falou. Juntos, vimos homens, mulheres e outras crianças morrerem, a cada dia. Escutávamos os homens rindo lá de cima, quando viam um negro morto. Outros cuspiam em nós. O ódio era um dos meus melhores amigos ali. 67 chibatadas.
Só restaram algumas dúzias de nós. A discórdia pairava sobre as nossas cabeças., não era tão fácil convivermos, estávamos todos acabados, destruídos, perdidos. E foi assim, em dia que nós já não sabíamos qual era, o navio negreiro lentamente parou. Escutávamos silenciosamente do porão gritos de homens expressando ordens e ajudando no descarregamento das mercadorias do navio. Em seguida foi a nossa vez de desembarcar. Os homens de túnica nos levaram para um local cheio de outros homens poderosos e ricos, o mercado. E foi daí que eu, minha filha, e metade dos nossos fomos vendidos para um dos senhores de engenho ali presentes. Foi nessa hora em que minha vida acabou.
80 chibatadas.
Voltei ao presente, levantei a cabeça e olhei novamente para o público. Shaira estava ali, olhando para mim, chorando desesperadamente. Ao seu lado, como uma luz brilhante, estava Alika. Linda, esperta e serena, como sempre foi no passado. Minhas mãos agora estavam soltas e minhas feridas curadas. Andei em direção a minha família, dei um beijo na testa de minha filha, e caminhei junto de Alika para um mundo que nenhum vivo conhece. Um mundo de paz.
Nenhum chibatada.
#RedaçãoEscolar
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