Um blog para ler e criticar, para e não se identificar, um blog de contos, textos e histórias.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Um Toque de Magia

 Ligou o gramofone devagar e escolheu um disco com o som baixo. O avô dormia calmo, no andar de cima, e a acompanhante estava lendo ao lado dele. A garota escutou a música clássica que tanto amava enquanto tirou um livro da estante poeirenta da casa de seu ancestral. Caminhou com pequenos pulos no ritmo da música com o livro no braço, indo para o sofá já velho. Alisou o vestido cinza e abriu o livro, abriu a porta para a imaginação.
 Amelie sempre gostara de livros e tudo o que se relacionava com a antiguidade, amava as batalhas históricas, lutas de espada, liças e mais liças, livros e mais livros. Amava a arquitetura gótica do feudalismo e amava fingir ser uma senhora feudal. Amava a dança e a música clássica, fazendo piruetas, saltos e mais saltos, músicas e mais músicas. Era uma garota diferente, porque tinha uma vida diferente.
 Ela ficou ali, no sofá, com seu livro, por alguns minutos até que seu avô acordasse. Ela o amava com todas as forças, até porque era necessário ter força. Subiu as escadas de madeira passando a mão pelo corrimão cheio de poeira. O vestido flutuava enquanto subia apressada. Virou no corredor e abriu a porta do quarto onde o avô a pouco dormia.
 Era um quarto grande, com poucas cores, mas muito aconchegante. A cama ocupava o meio do aposento e uma grande estante dividia a parede oposta com uma lareira. A escrivaninha que Amelie usava para escrever poemas era junto da cama e a poltrona da garota que acompanhava seu avô fora colocada ali depois do acidente. O velho homem estava sentado na beira da cama e os olhos da acompanhante haviam deixado o livro para prestar atenção no velho.
 Amelie entrou no quarto, com seu vestido a voar, e sorriu para a mulher que ajudava, depois sentou-se ao lado do senhor.
 “Vô? tudo bem?” perguntou, docemente.
 O homem levantou.
 “Vamos, Jullie, vamos! Temos que achar, temos que achar!” respondeu, gritando.
 Não era a primeira vez que ele a confundia com a avó e nem seria a última. O velho percorreu o quarto, andando em círculos, abrindo gavetas e armários enquanto Amelie e a outra mulher tentavam o acalmar.
 Quando era pequena, Amelie fora viajar com seus pais e sua avó. A viagem terminou em tragédia: o carro havia caído num lago e sua avó a salvou da morte, mas não salvou os pais dela nem se salvou. O avô tivera que cuidar da pequena criança avoada, e o fez com esplendor. Levava a garotinha para parques, a ensinava a jogar xadrez e jogos antigos, a educara como uma dama, falava de sua esposa e os pais da garota, ensinava coisas sobre nuvens e sobre a água. A garota o amava com todas as suas forças. Ele sempre enchera aquela casa velha com sua animação. Até que a doença do mal de Alzheimer foi dando sua cara.
 No começo fora mais difícil, sempre que ele surtava. Amelie não sabia o que fazer e ficava chorando trancada em seu quarto, enquanto ele quebrava coisas ou gritava para o além sobre sua Jullie. Esquecia quem era Amelie e quando a via rindo ou fazendo outra coisa alegre, se convencia que uma louca havia invadido sua casa. Já tentou atirar com sua espingarda numa caixa de brinquedo, dizendo que havia um assassino ali, mas só tinha um palhaço de plástico. A espingarda fora tirada das mãos do homem e trancadas num cofre da casa. A vida de Amelie deveria ter ficado negra, mas ela esforçava-se para lembrar dos dias coloridos que tivera com o homem. Sempre subia as escadas de madeira e tentava acalma-lo.
 “Jullie, achamos! Achamos, Jullie!” gritou, eufórico segurando uma lâmpada que ainda brilhava. “Queima!” falou, antes de jogar a luz no chão.
 A luz do quarto apagou e tudo o que Amelie queria era sentir o seu avô a abraçando e ouvi-lo falar que tudo ia ficar bem. Queria que ele falasse que tudo o que acontecera era uma brincadeira, apenas uma brincadeira. Que seus pais não haviam morrido, que ele nunca tivera Alzheimer. Queria ouvi-lo falar de nuvens, de física e matemática, de mágicas, muitas mágicas. Toques de mágica. Queria ouvi-lo falar sobre o escambo e a História. Queria ouvi-lo falar que a entendia.
 Amelie apenas sussurrou o quanto amava o avô, enquanto recolhia os cacos da lâmpada, para depois colocar o avô para dormir.

-Para: Nina (:

Nenhum comentário:

Postar um comentário